CONCEITO DE TECNOLOGIA, ESCOLA DA BIOMASSA E A LUTA DE CLASSES

CONCEITO DE TECNOLOGIA, ESCOLA DA BIOMASSA E A LUTA DE CLASSES

Gilberto Felisberto Vasconcellos

É estupendo o livro póstumo O Conceito de Tecnologia do filósofo Álvaro Vieira Pinto, que morreu em 1986 aos 77 anos de idade no Rio de Janeiro. Foi professor de filosofia da Universidade Federal, membro do ISEB em 1955, exilado pelo golpe de 1964 no Chile. Infelizmente as novas gerações não o conhecem. Não teve o prestígio intelectual forjado como muitos medalhões das ciências sociais.

Um dos raros intelectuais a conciliar marxismo e nacionalismo, num assunto sobre o qual fala-se muita besteira, como é o caso da tecnologia, uma das áreas mais submetidas ao jugo colonial, pois é pela tecnologia que é justificada a dominação externa. É falso apresentar nossa época como se nela houvesse um desenvolvimento nunca visto da tecnologia. É justamente esse deslumbramento pela tecnologia que caracteriza o capitalismo sob o comando das multinacionais, cuja ideologia converte a técnica num destino, quando na verdade a técnica é apenas uma mediação. Todo mundo usa a palavra tecnologia sem saber o que isso significa.

Álvaro Vieira Pinto escreveu sobre ciência, cultura, universidade e colonialismo. O que sobressai em todos os seus livros é o tema da exploração das colônias pelas nações metropolitanas, a rapinagem feita pelas áreas coloniais travestida de ajuda ou assistência técnica: “sabemos bem que uma das formas de dar sobrevivência às máquinas obsoletas nos centros metropolitanos consiste em transferir para países subdesenvolvidos, onde representarão em função do atraso local, um acréscimo de capacidade produtiva anterior”. Eis o que significa a tecnologia de origem externa incorporada ao processo nacional: “Sob a aparência do subdesenvolvimento do país receptor, efetivamente, quem desenvolve é a potência doadora, que instala no território atrasado seus dispositivos de dilatação econômica”. A receita dos países ricos para que os países pobres tecnologizem-se é um engodo cibernético.

O vocábulo tecnologia “significa” engenho feito pelo homem para produzir melhor os bens, é o logos da técnica, o saber das técnicas de que dispõe determinada sociedade. A acepção primordial da palavra tecnologia é o de ciência ou epistemologia da técnica: uma teoria cognitiva da ferramenta, ou seja, uma forma de consciência da técnica. Tecnologia é a contínua progressão da técnica, destinada a poupar esforço físico e mental. “A criação tecnológica de qualquer fase histórica influi sobre o comportamento dos homens, sem por isso entretanto haver o direito de considerá-la o motor da história”.

A maquinaria interfere nas condições de vida do homem, na produção mecânica, hidráulica, térmica, elétrica, porém atenção: a máquina não explica a dinâmica da história, o que a explica é a contradição entre as forças produtivas e as relações sociais, o regime social, enfim, as relações sociais estabelecidas entre os homens na produção material. A ênfase é na relação social do trabalho. A questão central da história é o trabalho, a história do homem é a história de seu trabalho, com o detalhe de que “trabalhar significa uma dignidade exclusiva do homem”, ou seja, não há trabalho na natureza, não há técnica na natureza, assim como as máquinas não trabalham: “as máquinas representam o trabalho do trabalho”. Uma força da natureza não deve ser entendida como uma manifestação de trabalho, digamos, de trabalho natural, assim como nem todas as forças naturais fornecem energia, a não ser que se encontre um “dispositivo captador”. Esse dispositivo é oferecido pela cultura. “Todo engenho que capta uma força da natureza e a coloque a serviço do homem pode ser chamado máquina”. Assim, a natureza, no plano físico, carece de técnica.

Por outro lado, o homem só se comunica com a natureza pelas mediações sociais, portanto a técnica é mediação, tal qual a fonte de energia. Isso significa que a essência da sociedade não se encontra na energia motriz nem em suas técnicas de aproveitamento. Álvaro Vieira Pinto antecipou a crítica feita por Bautista Vidal em “A Dialética dos Trópicos à Virgem Maria da sociologia do desenvolvimento”: a Cepal estruturalista. O intelectual, o cientista, o pesquisador das áreas atrasadas é “um importador de técnicas e aparelhos já vencidos, e de todo modo nunca inventado por ele, obrigando-o a ser um eterno recebedor da maquinaria esgotada em seu valor heurístico”.

Segundo Álvaro Vieira Pinto, a melancólica situação de operador de pacote tecnológico externo somente poderá ser superada quando o país “constituir-se em centro de invenção e máquinas que o habilitem a competir na linha de frente com as nações impulsionadoras do progresso geral da técnica”. A máquina obsoleta é exportada para os países subdesenvolvidos, as elites alienadas ficam boquiabertas e deslumbradas com a “transferência de tecnologia”, aplaudindo a chegada miraculosa da “assistência técnica”.

A tecnologia obsoleta representará no país subdesenvolvido “em função do atraso local, um acréscimo de capacidade produtiva do país receptor, medindo em números absolutos, ou seja, por comparação com a produtividade anterior”. Álvaro Vieira Pinto estava de olho na instalação das multinacionais no Brasil a partir de 50.

As empresas multinacionais (a indústria nacional dos outros aqui instalada) em países de passado colonial, eis o fato marcante da história do século XX. “No país subdesenvolvido, mais grave do que a escassez real de bens de fundo, é a ilusória posse das forças e instrumentos produtivos instalados no espaço geográfico nacional, porém de fato ausentes do espaço existencial do povo”. Isso também foi observado por Marcelo Guimarães: “ao venderem para os países subdesenvolvidos as indústrias siderúrgicas, de alumínio, etc, poluidoras, intensivas de energia elétrica e, portanto obsoletas, eles têm a oportunidade de construir as unidades com as inovações tecnológicas necessárias, tornando-se mais competitivas e vendendo o atraso”.

Resulta daí um mero “crescimento por permissão”, no dizer de Álvaro Vieira Pinto. O centro dirigente controla a tecnologia transplantada na “nação manipulada”, a qual somente tem direito a um “desenvolvimento autorizado”. Pagamos alto preço pela fonte estrangeira da tecnologia: “nunca o explorador estrangeiro terá interesse em fabricar na região anexa o que corresponde ao produto mais elevado de sua invenção. Se há privilégio de que jamais abrirá mão é o de inventar, de gerar a técnica. Só exporta o já sabido, o já usado, aquilo que não pode mais dar lucro senão funcionando no estado de sobrevida, por ter perdido a rentabilidade para o produtor central”, esclarece Álvaro Vieira Pinto. À caducidade da tecnologia exportada pelas nações reitoras acrescente-se a “tecnologia de ocupação”.

Os fâmulos das multinacionais desde a metade dos anos 50 consideram que o caminho do desenvolvimento é a compra de tecnologia estrangeira, relegando a plano secundário a “criação científica e tecnológica autóctone”. Esses fâmulos, alguns deles cientistas e sociólogos, fazem salamaleques diante de uma “ciência a reboque”. A escola da biomassa se insurgiu contra essa concepção colonizada de tecnologia de origem estrangeira. A cópia das “pontas de tecnologia” tentam impulsionar os usos atuais da indústria baseada na energia fóssil, invés de criar uma verdadeira “tecnologia de ponta” baseada nos avanços abundantes e estratégicos que somente os países tropicais podem produzir, ou seja, desenvolver o motor brasileiro à álcool e toda alcoolquímica.

Álvaro Vieira Pinto percebeu que a função da tecnologia num país dominado é acabar com a dominação, ao contrário das elites safadas das áreas atrasadas cujo vício é manter a relação de mendicância no plano tecnológico. “A falácia mais eficiente da nação dominadora consiste em absolutizar a tecnologia que possui, excluindo-a da história, como se não lhe tivesse custado penoso processo de acumulação de trabalho das suas massas e de espoliação externa, e não sofresse a ação do tempo, que necessariamente a fará declinar”. Esse esquema de dominação nos converte em meros estudiosos dos produtos tecnológicos estrangeiros, vedando-nos a criação. No limite, acredita-se que tecnologia só existe em país adiantado, como se o país atrasado fosse desprovido de tecnologia (vide a tecnologia da mandioca e da carne seca), tendo pois de importá-la. Ironiza Álvaro Vieira Pinto: “basta a importação da técnica estrangeira, e principalmente dos técnicos de fora, para operar a qualificação do pessoal local, despreparado e ignorante, semelhante por este aspecto aos demais elementos da população”. Um lugar sempre é escolhido para ser o receptor do produto tecnológico estrangeiro com “metrópoles internas” dentro do país, cuja política se compraz em “desenvolver o desenvolvido”. É o caso de São Paulo, leão de chácara dos interesses multinacionais.

A metrópole constrói a sua mitologia de auto-suficiência tal qual o pretensioso self made man. A verdade é que os desenvolvidos não querem desenvolver os subdesenvolvidos, conforme supõem os idiotas do “país pedinte”. Álvaro Vieira Pinto lida com uma semântica do colonizado parecido com Glauber Rocha. “O colonizado, por definição, não pensa, justamente porque tudo quanto poderia pensar lhe foi antecipadamente transfundido de fora”. O receptor cultural é um exportador de matéria prima e um importador de tecnologia obsoleta. Chega-se assim ao paradoxo de uma ciência anti-nacional. A condição do subdesenvolvido é a do eterno aprendiz de tecnologia. É impressionante verificar o arrojo intelectual de um autor que destoa do complexo e de inferioridade que medra entre nós: é daqui que vem a compreensão das nações metropolitanas.

Vários autores gostam de citar a famosa previsão do filósofo Hegel sobre o antagonismo entre América do Norte e a América do Sul. “A América é a terra do futuro, na qual em tempos vindouros haverá uma contenda entre a América do Norte e a América do Sul, e onde a importância da história universal deverá manifestar-se”. Darcy Ribeiro dizia: Hegel achava que a América do Sul ia ganhar a parada. Se algum analista fosse em busca do sentimento ou da cultura anti-imperialista nas últimas décadas do Brasil, dir-se-ia tranquilamente que Hegel estava louco em sua previsão. Isso porque culturalmente sumiu qualquer constrangimento brasileiro diante da ocupação econômica norte-americana. Esta aumentou de modo exorbitante, porém a indústria ideológica – cada vez mais dirigida pelo capital estrangeiro – diz amém à americanização da cultura. A resistência nacionalista é ínfima, como se não tivesse objetivamente razão de existir, como se não fosse total a hegemonia cultural estrangeira, convencendo-nos de que o Estado prejudica a economia do país, que o tamanho do território brasileiro não tem sentido no mundo atual. Este último aspecto ganha relevo mediante a denúncia da escola da biomassa: o interesse do imperialismo do Hemisfério Norte é contribuir para esfacelar a nação brasileira junto com a desintegração territorial.

Tudo o que tem acontecido no Brasil nos últimos 30 anos deve ser analisado sob o prisma do território, não apenas o aspecto quantitativo (sua dimensão continental), como também o aspecto qualitativo de seus recursos naturais. A lei da unidade dialética dos contrários manifesta-se no significado do território brasileiro para o século XXI, tão bem retratado pelo diplomata Samuel Pinheiro Guimarães: “o destino da sociedade brasileira jamais poderá ser médio, tendo em vista as dimensões de seu território, de sua população e de seu PIB; sua localização geográfica e os desafios de suas disparidades sociais e de suas vulnerabilidades externas. O destino brasileiro será de grandeza ou caos”. Esse dilema é de ordem física, econômica e histórica com o despontar energético da biomassa no horizonte do século XXI.

O trópico assumirá papel predominante no século pós-petróleo por uma determinação geográfica, física e ecológica.

 A Providência Eletrônica

Álvaro Vieira Pinto alertou contra o fetichismo da máquina ou da técnica, pois é preciso não esquecer que as máquinas, os instrumentos, as ferramentas são parte integrante das relações sociais, de modo que não tem o menor cabimento afirmar que vivemos atualmente numa “civilização tecnológica”. Toda época histórica tem a sua tecnologia. O homem sempre viveu numa civilização tecnológica. Do guarda-livro ao computador. Do arado ao computador. Do arpão de osso ao foguete. Atribuir função messiânica à técnica é uma ideia mística, sem nenhum conteúdo de verdade, e que só serve para deixar as pessoas ainda mais confusas. “A tecnologia do futuro é um fato técnico. O futuro da tecnologia é o fato social”.

A ideia equivocada sobre a existência de uma civilização tecnológica traz embutido outro equívoco: o de que a técnica é quem faz a história, como se as relações técnicas impulsionassem as transformações históricas. E nesse aspecto Álvaro Vieira Pinto contrariou o pensamento corrente, inclusive discordando de pensadores marxistas como é o caso de Darcy Ribeiro, para quem o dispositivo tecnológico (as técnicas aproveitadoras das fontes de energia) está na base da caracterização das várias civilizações do passado. “A história da máquina por si não explica a máquina”, segundo Álvaro Vieira Pinto que discorda de Darcy Ribeiro: a técnica não é fator causal das transformações históricas. É um equívoco fazer da história um produto da técnica. Se a técnica não move a história, seria superficial e sem fundamento científico periodizar a história em épocas: pedra lascada, polida, metal, aço, ou seja, através das sucessivas “revoluções tecnológicas”, como faz Darcy Ribeiro em seu livro O Processo Civilizatório.

Álvaro Vieira Pinto deixou claro o consórcio de energia e tecnologia na relação do homem com o meio físico. A tecnologia utiliza várias das fontes de energia para fabricar utensílios. As máquinas e as técnicas são mediações necessárias na história do homem, mas a primazia cabe às relações sociais. A criação das máquinas, por si só, não altera as formas de sobrevivência entre os homens. Admitir o contrário é dar asa ao “fetichismo maquinístico”. Não há desejo nas máquinas: “nunca ninguém viu até agora uma máquina cibernética proclamar, como Descartes, “eu penso”. O animal não trabalha. Também não se pode dizer que a máquina trabalhe. Por trás da máquina há sempre a mão do homem.

Ainda que sejam importantes a energia e a tecnologia, elas não são no entanto as causas das transformações ocorridas na história, nem tampouco devem servir como critério para a divisão da história em períodos, a exemplo da descoberta do solo produzindo as plantas para a alimentação, a instituição da agricultura superando a etapa da coleta e da caça, abrindo a possibilidade para o pastoreio e logo, a seguir, a aglomeração urbana.

É superficial a classificação de períodos históricos em pedra lascada, polida, metal, aço, etc, pressupondo com isso que a técnica seja o elemento impulsionador das transformações da existência humana. Álvaro Vieira Pinto não concede à energia nem à tecnologia um poder demiúrgico. Para ele, seguindo os ensinamentos de Marx e Engels, quem faz a história são os produtores, as massas de trabalhadores. A fase histórica não se define pelo tipo de máquina nem pelo uso de fontes energéticas, mas sim pelo regime social de produção, pelas relações sociais dos trabalhadores, pois as máquinas operadoras das fontes de energia não funcionam sozinhas e independentemente do regime social de produção. A mesma crítica ao fetichismo energético e tecnológico aplica-se à mídia, considerada equivocadamente como o agente histórico do século XX, ainda que a televisão – sem dúvida um avanço no conhecimento da eletrônica – tenha introduzido significativas alterações na conduta e nos hábitos do homem.

Na escola da biomassa de Bautista Vidal e Marcelo Guimarães tematiza-se a energia e a tecnologia, as quais aparecem como fatores predominantes, diferentemente do que se observa na abordagem de Álvaro Vieira Pinto, para quem “não são as formas de energia utilizadas nem os mecanismos técnicos que, por si, diretamente, a título de fator causal único, determina o processo de produção e muito menos estabelecem a periodização histórica”. A biomassa vegetal substituindo o petróleo não caracteriza, contudo um novo período da história, assim como o petróleo não é a essência social do século XX. Para Álvaro Vieira Pinto é superficial periodizar a história segundo as formas de energia adotadas ao longo da evolução da humanidade.

A energia e a tecnologia não fazem a história, não são as causas do acontecimento histórico, e sim elementos secundários. Existiu o trabalhador escravo com a técnica do machado de pedra, de bronze e de ferro. O que define a história é o modo social de produção da existência humana, e não os instrumentos como máquinas e as fontes de energia, os quais nem podem ser considerados como marcos divisórios. Raciocínio equivocado também seria dizer, como os midiólogos o fazem, que o “homem atual recebeu nova essência com a descoberta da imprensa”. Álvaro Vieira Pinto insiste, em sua abordagem filosófica da tecnologia, que o fundamental é o regime de relação social. Para um filósofo marxista não tem sentido falar em “revoluções tecnológicas”, ou senão defender a tese que a marcha da história é determinada pela fonte de energia de que se utiliza o ser humano.

Nesse aspecto Álvaro Vieira Pinto diverge de Darcy Ribeiro e de Bautista Vidal, pois a tecnologia e a energia não provocam mudanças efetivas no modo de produção social. “A mudança de fase histórica não se define pela variação do tipo de máquinas operativas ou, em geral, pela alteração dos meios operatórios que executam as transformações da natureza nos processamentos de fabricação de bens materiais, mas pela substituição do relacionamento da técnica com as classes sociais”.

Os representantes da escola da biomassa não pensaram a energia em relação à questão da luta de classes. A pergunta, portanto, se justifica: o que faz a sociedade mudar sua matriz energética? Certamente isso não é decidido por uma plêiade de cientistas iluminados e de vanguarda. A mudança de matriz energética não está dissociada dos interesses de classe. Em se tratando de tecnologia, Álvaro Vieira Pinto assinalou no entanto que a relação entre classe e técnica é uma relação de exterioridade. A técnica não tem nenhuma base de classe social, mas ele afirma que o essencial são as relações sociais de produção, e não a energia e a tecnologia com os seus engenhos mecânicos empregando forças matrizes físicas. Por exemplo: uma transformação tecnológica ou uma nova fonte energética não engendra a passagem de uma formação histórica a outra. A tecnologia é incapaz de oprimir o homem, assim como é incapaz de libertá-lo. Eis a frase dele: “Nenhum computador é revolucionário, como nenhum machado paleolítico o foi”. Portanto, não é a tecnologia que fará a libertação dos povos explorados, o que fará a libertação dos povos explorados é a luta política. É a consciência do atraso e da exploração. O mais importante não é a cibernética, e sim a dialética. O mais importante é a filosofia, e não a cibernética.

A tecnologia tornou-se a palavra-chave nos pronunciamentos de todos os líderes burgueses, assim como é peça fundamental no léxico dos acadêmicos, tanto em sociedades avançadas quanto nas subdesenvolvidas, tendo sempre acepção de fator determinante na história. É impressionante, nas últimas décadas, como a tecnologia (computador e telefone celular) desempenha o papel principal no cinema roliudiano. É a destreza no uso do computador e do celular que decide a sorte do bandido e do mocinho, mas não apenas nos filmes do cinema dominante encontra-se o enaltecimento da democracia eletrônica, da sociedade informática, da cidadania online, do tele-pluralismo, do ciberamor. Assim, Bill Gates está in; Lenin out – a internet é aplaudida por trazer a “igualdade virtual”. É sempre pelo ângulo do processo de desenvolvimento tecnológico – agora o determinismo microchip – que se reconhece o triunfalismo capitalista com as mirabolantes periodizações da história em “modernidade” e “pós-modernidade”.

É importante realçar que Álvaro Vieira Pinto não atentou, durante os meados dos anos 70, para o significado da exaustão do combustível fóssil do ponto de vista geopolítico, ou seja, o esgotamento de uma forma de energia que sustentou o desenvolvimento capitalista industrial. A resposta a esse problema da natureza requer evidentemente a transformação de relações de produção (capitalistas para socialistas), mas a questão agora é física, geográfica e ecológica. É que pela primeira vez na colônia, digamos no espaço físico tropical de uma ex-colônia, situa-se uma fonte energética capaz de abastecer intensiva e extensivamente a sociedade industrial do século XXI. O que permanece como problema é a libertação do atraso e do subdesenvolvimento.

 O Processo Civilizatório

Lástima Darcy Ribeiro não estivesse vivo quando veio a lume O Conceito de Tecnologia de Álvaro Vieira Pinto, escrito em 1974 e publicado em 2005. Tenho curiosidade em saber o que teria dito Darcy Ribeiro desse magnífico livro, que por sinal abordou o mesmo assunto de sua Antropologia das Civilizações, centrada na concepção de tecnologia.

Todos os livros de Darcy Ribeiro sublinham que a inovação tecnológica é o principal fator dinâmico da história. Às vezes me passa pela cabeça a hipótese de que O Conceito de Antropologia tenha sido uma resposta (embora não o cite nenhuma vez) ao O Processo Civilizatório publicado em 1968, ano em que ambos estavam exilados na América Latina, um em Montevideo, outro no Chile.

Mais velho 13 anos, nascido em 1909, Álvaro Vieira Pinto foi amigo de Darcy Ribeiro no Rio de Janeiro antes do golpe de 64, na época em que o antropólogo estava pesquisando os índios. Ainda que não fosse intenção dele escrever um livro pensando no livro de seu amigo, fato é que ambos têm concepção diametralmente oposta da função da tecnologia. Marxistas, nacionalistas, anti-imperialistas, terceiro mundistas, ambos educadores e mentalizadores de universidades. A diferença reside na concepção de tecnologia. Álvaro negou a tese de que a tecnologia fosse o fator causal do processo civilizatório, apontando o regime das relações sociais fundado no trabalho, ou seja, o modo de produção social. O avanço tecnológico é o resultado das forças produtivas, de modo que é um equívoco conceber a história como um subproduto da técnica.

A centralidade do trabalho, eis que aparece como fundamental em O Conceito de Tecnologia. O fogo hoje é produto da indústria. “A história da máquina por si só não explica a máquina. O que a explica é a história natural do homem”. É preciso não esquecer que Álvaro nesse livro tem por escopo refletir sobre a função da máquina na evolução histórica da humanidade, alertando o tempo todo que as relações sociais têm a primazia. Decorre daí que o trabalho, e não a máquina, é o verdadeiro conteúdo da história. Máquina alguma é capaz de alterar as relações ou as formas de convivência entre os homens, portanto o perigo é embarcar no fetichismo da tecnologia, que é a mais poderosa ideologia de direita do nosso tempo, como se existisse um cérebro eletrônico, como se houvesse um cogito nas máquinas. Não são as máquinas que trabalham. Não é a técnica em si que faz a história se mover.

Álvaro chega ao ponto (e nisso a divergência com Darcy é total) de negar a periodização da história sob o prisma das revoluções técnicas, a exemplo de pedra lascada, polida, metal, aço, pois isso significaria elidir o regime das relações de produção. Tal critério, segundo ele, traz implicação política equivocada, de vez que se a técnica é o motor da história, então a técnica seria de salvar a humanidade; afinal, não é a técnica que determina a escravidão nem o trabalho assalariado, assim como não é a falta de técnica a causa da fome.

Não adianta pois dar técnica a quem tem fome. O problema ganha dimensão política quando se analisa a questão do país doador para o país receptor de tecnologia, ou seja, a chamada “tecnologia transplantada”. É que o consumo de um bem de procedência estrangeira leva o consumidor a identificar-se com o país que o produziu. Ademais, existe a caducidade da tecnologia importada que ganha vida nova no país receptor. Afinal, o que o exportador exporta? Exporta o já sabido e o que é obsoleto para acelerar o retardado. Daí a armadilha da vanguarda retardada. A tecnologia para nós só deve ser valorizada se contribuir para acabar com a dominação colonial.

O que existe na relação colonial é a tendência de desenvolver o desenvolvido, pois os desenvolvidos não querem desenvolver os subdesenvolvidos. O país dominante sempre apresenta-se generoso: “Acolhe discípulos convidados do mundo atrasado porque vê neles não futuros inventores, mas adeptos e cônsules”. O que é instalado aqui, é a indústria nacional do outro. Vivemos da enxertia e não de semeadura, somos o “país pedinte”, enquanto a metrópole luta contra a “fatalidade do declínio”. O que deve ser nossa preocupação básica: “saltar o hiato que nos separa dos povos adiantados”.

Qual é a psicologia do sócio-menor? Qual é a subjetividade do povo pobre? É preciso tomar cuidado: as técnicas não são classes sociais, assim como a melhoria técnica não altera as relações de produção. O tipo de máquina manejada pelo trabalhador não suprime a exploração. Estamos condenados a ser inventivos. Invenção etimologicamente significa “descobrir-se a si mesmos, ir ao encontro de”. Eis a definição de tecnologia: “o conjunto de todas as técnicas particulares”. É um embuste a ideia de que a técnica é autogerada: “em vez de ser o inventor, o que inventa a máquina, esta é quem inventa o inventor”.

O segundo volume de O Conceito da Tecnologia trata da relação metrópole-colônia. Quando se propaga o fator da técnica em escala planetária, a jogada é mostrar o caráter invencível da dominação metropolitana, ou seja, “o poderio imperialista de base tecnológica”. O fundamental na concepção de Álvaro Vieira Pinto é o regime de relações sociais de trabalho. “Os computadores são por definição máquinas doxáticas”. Quem é provido de cogito é o homem, não o computador.

Eu penso que a máquina pensa, mas a máquina não pensa. Daí a teodicéia do computador. Hoje, em todos os lugares, a maquinaria tecnológica é apresentada como o sujeito da história, posto que estamos vivendo, como nenhuma outra, a “era tecnologica”. Esquecemos o machado de pedra ou a canoa feita de casca de árvore. A cibernética não dá início a nenhuma nova era tecnológica. A tese de Álvaro Vieira Pinto é a seguinte: a história não deve ser periodizada nem pela energia utilizada nem pelos aparatos técnicos, pois essas duas coisas não determinam o processo de produção social.

O importante na existência histórica são as relações sociais, portanto pedra lascada, polida, bronze, eletricidade, energia atômica – tudo isso é a exterioridade do processo histórico, e não a sua essência. Por essência do processo civilizatório entende-se “os modos sociais de produção existência, os regimes sociais é que são o elemento primário”.  Tanto isso é verdade que machado de pedra, de bronze e de ferro conviveram com o trabalho escravo. O elemento decisivo é o regime de produção e não o instrumento ou utensílio técnico. “Os instrumentos, em si, não têm história”. Eis, portanto, o núcleo do pensamento de Álvaro Vieira Pinto: não são as criações tecnológicas nem as revoluções tecnológicas que operam os “cortes da história”, não são marcos divisórios, não são os fatores propulsores da história. Por conseguinte, é preciso livrar-se do fetichismo do instrumento: este não é o “gerador da sociedade”.

Remando contra a maré do pensamento dominante, ele diz que o homem não ganhou nova essência com a descoberta da imprensa. Trata-se de uma maneira de substituir a essência pela aparência: “o curso do processo histórico seria então explorado por fatores superficiais, resultantes da tecnologia de produção. Instala-se a tese segundo a qual a tecnologia representa o fator decisório da história, donde a inevitável divisão desta em função das grandes descobertas científicas e das criações técnicas”. Aqui se encontra a tão propagada mistificação da máquina e da ferramenta. “A mudança de fase histórica não se define pela variação do tipo de máquinas operativas ou, em geral, pela alteração dos meios operatórios que executam transformação da natureza nos processamentos de fabricação de bens materiais, mas pela substituição do sistema de relações sociais que utiliza as máquinas”.

O diálogo de Álvaro Vieira Pinto é com o marxismo e a tecnologia. As forças motrizes físicas (carvão, petróleo, energia nuclear) não alteram as condições existenciais do trabalhador, pois este continua trabalhando para outro, alienando o fruto do seu trabalho. As inovações tecnológicas não mudam as condições sociais em que o trabalho é exercido. “A criação tecnológica não atua como fator autônomo no curso da história, dela não decorre imediatamente uma nova situação, mas representa apenas a substituição de um tipo de mediação por outro, portanto não lhe retira jamais o valor de mediação, não a promove ao status de causa”. Uma transformação tecnológica não enseja a passagem de uma formação histórica a outra.

Os contemporâneos julgam o presente como algo extraordinário, daí a mistificação de uma era tecnológica. O homem não é mais inteligente hoje do que era no passado. O fetichismo da tecnologia está na apresentação da guerra. A luta é dos homens e não das armas. Em qualquer sociedade existe tecnologia. O Brasil é um país que nasce no século XVI, mas tem uma anterioridade fundada num gênero humano que aqui viveu e vive: os índios.

O que a direita faz não é senão esfacelar, escamotear e esquecer o legado dos índios. Não só a rede, o milho, a mandioca, mas também a docilidade, a fraternidade, a comunhão do homem indígena com a natureza. “Jamais uma alteração nas mediações do trabalho, a troca das ferramentas e das máquinas, mediante as quais se executa, conduziu a uma nova etapa histórica”. O avião não foi feito para voar, mas para o homem voar. Mistificação é acreditar que a técnica de procedência estrangeira vai eliminar a pobreza. A alienação colonial está enredada na tecnologia “a aquisição da técnica não é um fato técnico, e sim político”.

O importante são as relações de produção, o modo de convívio dos indivíduos uns com os outros. Eis a distinção: “a tecnologia do futuro é um fato técnico. O futuro da tecnologia é um fato social”. A tecnologia não tem origem de classe, mas está vinculada à classe que a utiliza.

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