Por Ricardo Guerra
A fome coletiva pode ser caracterizada pela fome aguda ou total – representada pela verdadeira inanição, e também pela fome crônica ou parcial – representada pela falta permanente de determinados elementos nutritivos essenciais para a vida:
- A fome aguda é, na maioria das vezes, limitada a áreas de extrema miséria e a circunstâncias excepcionais;
- Enquanto a fome crônica, apresenta-se de forma muito mais frequente e expressa uma característica aparentemente “oculta”;
- Ou seja, existem duas maneiras de morrer de fome – Não comer nada e drasticamente definhar até o fim ou comer de maneira insuficiente e inadequada e entrar lentamente em colapso, silenciosamente até à morte.
A fome crônica foi o foco principal dos estudos realizados por Josué de Castro – um médico, professor e pesquisador brasileiro, que estudou os problemas da fome e da miséria no Brasil e no mundo.
Suas pesquisas, inicialmente realizadas em bairros operários de Recife (no início do século XX), o conduziram à irrefutável conclusão:
- O fenômeno da fome é uma catástrofe social absolutamente evitável;
- E não decorre de uma situação relacionada a condições físicas, climáticas e/ou étnicas, como se tentava justificar naquela época e, até mesmo nos dias atuais, ainda tentam usar essa falácia como forma de argumento.
O seu livro “Geografia da Fome“, é uma referência mundial sobre a temática relacionada à pobreza, à miséria e à fome e revelou ao mundo uma realidade negligenciada e escondida pelas autoridades:
- As causas da fome coletiva, fenômeno que atinge de forma endêmica ou epidêmica grandes massas humanas, não são naturais;
- Por trás desse lamentável e triste fenômeno encontram-se questões relacionadas às diretrizes econômicas adotadas pelos governos, às opções políticas realizadas e à forma como as sociedades são organizadas.
Foi observando a centralidade dos mangues no cotidiano das pessoas que migravam para o Recife, em busca de melhores oportunidades de vida, que a problemática da fome saltou aos olhos de Josué de Castro:
- Através das histórias de vida que estudou, Josué de Castro foi compreendendo que a fome não era uma expressão ou um atributo específico dos mangues;
- Os mangues apenas atraíam os homens famintos do entorno da região, particularmente da zona da seca;
- E também da zona de plantio da cana-de- açúcar, onde, segundo suas palavras, “a indústria açucareira esmagava, com a mesma indiferença, a cana e o homem, reduzindo tudo a bagaço”.
Na verdade, percebeu Josué, “o mangue – às margens do Rio Capibaribe – era a terra de promissão, na qual pessoas (em condições precárias de vida) vinham se aninhar na lama, em busca do maravilhoso ciclo do caranguejo”.
No decorrer do processo que foi lhe desvendando a terrível realidade da fome, escreveu:
- “No mangue, os homens assumem a condição de ser anfíbios, habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos”;
- “Ali, os homens se faziam irmãos de leite dos caranguejos… alimentados na infância com caldo de caranguejo – um leite feito de lama”.
Sendo especialmente marcante o registro que fez dessa situação:
“A impressão que eu tinha, era de que os habitantes dos mangues – homens e caranguejos nascidos à beira do rio – à medida que iam crescendo, iam cada vez se atolando mais na lama… enquanto se arrastavam para poder sobreviver”.
Josué de Castro foi pioneiro ao denunciar como a fome age, não apenas sobre os corpos das suas vítimas – “consumindo a carne, corroendo os órgãos e abrindo feridas na pele, mas também sobre o espírito e sobre as suas estruturas mentais”.
Sobre isso, sentenciou:
“Nenhuma calamidade pode desagregar a personalidade humana tão profundamente e num sentido tão nocivo quanto a fome… a imperiosa necessidade de se alimentar faz os instintos primários serem despertados e o homem, como qualquer outro animal faminto, demonstra uma conduta mental que pode parecer das mais desconcertantes”.
O poeta Manuel Bandeira (seu conterrâneo), representou em “O bicho”, uma terrível expressão dessa realidade por Josué de Castro revelada:
“Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem”.
Para Josué de Castro, querer justificar a fome como um fenômeno natural e inevitável não passava de uma técnica de mistificação, utilizada para ocultar as suas verdadeiras causas:
- Causas que no passado, foram o tipo de exploração colonial imposto à maioria dos povos do mundo;
- E no presente, o neocolonialismo econômico a que estão submetidos os países de economia primária – dependentes e subdesenvolvidos – nos quais se faz marcante a presença da fome, como é o caso do Brasil.
O sucesso vivenciado por uma parcela da nossa denominada elite econômica não produziu (e nem será capaz de produzir) melhora nas condições de vida no conjunto da nossa população:
- Na verdade, esse “sucesso” é elemento determinante para a configuração do evento da fome no Brasil;
- Contexto que vem se agravando nos últimos tempos, com a agressiva imposição da criminosa agenda neoliberal no país;
- E o fortalecimento de uma política econômica fundamentada em cortes de gastos sociais, supressão dos direitos trabalhistas, precarização do trabalho e ajustes fiscais.
Sem alteração nesses parâmetros socioeconômicos a fome crônica seguirá destruindo a vida de significativa parcela da nossa população:
- As distorções econômicas e sociais determinam todo esse contexto;
- E o silenciamento que se faz em relação a esse grave problema social revela o esforço das nossas classes dominantes para não permitir que se possa discutir a estrutura social e política da nossa sociedade;
- Estrutura que faz com que, num país que produz alimentos com capacidade de suprir as necessidades de mais de 1 bilhão de pessoas em todo o planeta, milhões de pessoas vivenciem uma realidade de privação alimentar.
A solução para esse problema exige interesse e vontade política e reivindica a organização de outro modelo de sociedade:
- Uma sociedade, que não seja baseada na insaciável busca por lucros;
- E seja estruturada pela justa divisão das riquezas e pelo subvencionamento coletivo dos benefícios sociais.
Há uma parte da sociedade brasileira que, de dentro de suas redomas, “teima” em não enxergar essa realidade e precisa compreender os reais motivos porque, num país tão rico como o Brasil, a fome ainda campeia.
Frente a esse grave cenário, urge recolocar o problema da fome no centro dos nossos debates, ecoar a voz de Josué de Castro, denunciar essa realidade e cobrar do Estado a sua responsabilização.
O compromisso com essa causa é um dever de todos e a organização e a mobilização para a luta se apresentam como perspectivas decisivas para a nossa atuação!